Uma Maneira de Estar com a Criança
- brandaolenise
- 11 de jan.
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Escrevi pela primeira vez este artigo para apresentá-lo no encontro de Terapia de Criança na ACP em 13/10/90, em São Paulo. As reações, que a minha fala suscitou, levou-me a refletir mais sobre certos aspectos do que eu havia escrito. Decidi, então, refazer o artigo para incluir estas reflexões complementares. De certo que houve também concordâncias com as minhas colocações, o que me tranquilizou. Mas as reações contrárias parecem ser mais frutíferas, no sentido de nos instigar a ir mais adiante.
Estamos como adultos pertencentes à cultura ocidental tão familiarizados com o uso do hemisfério esquerdo do cérebro e de seus processos racionais-cognitivos, que temos dificuldade de conceber uma atividade humana como a psicoterapia, sem que tais processos estejam atuando de forma exclusiva ou prioritária, como se não pudéssemos prescindir deles em momento algum de um processo de mudança da personalidade, sem que isto implicasse uma deficiência ou uma ineficácia desse processo.
Por outro lado, o lado direito de nosso cérebro, com o seu funcionamento sensitivo e intuitivo, parece-nos tão obscuro, misterioso e escorregadio, que temos necessidade de validar os seus processos complementando-os com o funcionamento lógico-reflexivo, para que se tornem confiáveis aos nossos olhos. Como estamos limitados!
A ideia básica colocada por mim neste artigo é que o motor do processo de mudança afetivo-emocional na criança reside no que é experienciado por ela ao nível sensitivo e simbólico no contexto da relação afetiva com o terapeuta. Isto não significa que uma complementação conceitual não possa ocorrer através de uma atuação reflexiva do terapeuta como devolução à expressão da criança. Significa apenas que tal complementação não se constitui em condição sine qua non para que a mudança afetivo-emocional da criança ocorra e o processo terapêutico seja levado adiante.
Pensando a evolução da psicoterapia com crianças, vemos que ela se deu a partir da psicoterapia com adultos, fazendo-se as adaptações necessárias no que concerne aos meios de expressão do sujeito em terapia – no adulto, a fala e na criança, o brincar, conservando-se praticamente inalterada a função do terapeuta, que seria o decodificador do material trazido pelo sujeito.
Tenho refletido que, assim como há uma diferença na forma de expressão da criança, existe também uma diferença quanto ao processo de experienciação e mudança interna, que na criança ocorre de maneira direta, sem a necessária intermediação do pensamento reflexivo. O papel deste vai se tornando mais ativo, à medida em que a criança vai atingindo a puberdade, adquirindo o processo terapêutico gradativamente mais simbolização verbal reflexiva no cliente e no terapeuta.
Carl Rogers, em sua teoria da personalidade, coloca que o ser humano nasce e funciona no primeiro ano de vida como um todo integrado, regido por uma tendência que o impulsiona no sentido de uma organização e complexidade crescentes, de uma expansão em vários níveis – no físico, no psíquico, pela criação de instrumentos e de obras, pela maternidade/paternidade, por uma socialização, uma independência e um autogoverno crescentes.
São as relações humanas, da maneira como elas ocorrem em nossa sociedade, que levam à dissociação e ao conflito dentro do ser humano entre algumas de suas necessidades e sentimentos, e a imagem que a criança foi construindo de si mesma, com os valores e diretrizes que emanam do social, sobretudo da família.
A reorganização psíquica da criança poderá, então, ocorrer no meio de relações permeadas daquelas qualidades, daquelas características facilitadoras que faltaram a ela em suas relações básicas durante o seu processo de crescimento.
A relação terapêutica se reveste, assim, de importância capital, tornando-se o principal instrumento do processo de mudança afetivo-emocional da criança.
Vamos lá ao artigo.
Como elas chegam até a mim? Às vezes, emburradas, protestando no silêncio por terem sido trazidas contra a sua própria vontade. Outras vezes, curiosas, querendo saber quem sou eu, para que elas foram ali e o que eu vou fazer com elas. Outras ainda, assustadas, com os olhos arregalados e o corpinho rígido.
Tenho percebido que as palavras contam pouco. Não tem muito significado o que eu possa dizer a elas nesse primeiro momento. Ou permanecem quietas por alguns instantes, tentando apreender mais para si mesmas aquele contexto, ou são como que atraídas pelos brinquedos e começam a explorá-los, algumas timidamente, outras de forma animada.
A partir do momento em que optam por uma brincadeira e começam a estrutura-la, me chamam para brincar junto com elas, quer se trate de um jogo a dois, de uma cena em que eu vá ou não desempenhar um personagem, ou de uma criação individualizada, como um desenho, ou uma modelagem. A demanda é direta, sob a forma de um convite (Vem!), ou de uma designação de tarefa (Você vai fazendo isso, eu faço aquilo.), ou de uma estranheza diante da minha atitude de observação (Você não vai fazer o seu?).
De qualquer maneira, é importante desde os primeiros momentos de nosso contato que eu possa estar junto com elas no seu mundo de brincadeiras, com os seus símbolos, com suas regras e com suas fantasias, transpondo para o jogo as situações reais, como estão sendo vivenciadas, o que as ajuda a assimilá-las, a recriá-las e modificá-las.
Esta necessidade permanece nos contatos seguintes, quando elas chegam à sala e dizem “Hoje nós vamos brincar disso.” Ou perguntam “O que vamos fazer hoje?” Através do brincar, ocorre a distensão das expectativas e receios iniciais, e a nossa relação vai sendo construída.
Tenho percebido que neste processo pouca significação e pouca utilidade em termos terapêuticos tem a exploração verbal dos conteúdos trazidos pelos jogos e pelas cenas construídas, seja decodificando-os, interpretando-os, ou fazendo inferências ao nível simbólico. Lembro-me de uma criança que, quando eu tentava devolver para ela o conteúdo do seu jogo, me disse “Eu não quero que você fale, eu quero que você brinque.”
Parece-me que as palavras têm lugar e são úteis quando fazem referência e explicitam os sentimentos, as necessidades e as atitudes que estão ocorrendo na nossa relação. Neste ponto, é importante que eu esteja realizando uma apreensão correta dos meus próprios sentimentos, para que eu possa compreender o que está acontecendo em nossa relação, como também, ao verbalizá-los fidedignamente, ajudá-la a alcançar uma apreensão adequada de seus próprios sentimentos e de suas atitudes.
Durante um ano e seis meses, atendi uma criança uma vez por semana em meu consultório. Vou chama-la de Ana. A sua atitude comigo era agressiva, partindo algumas vezes para a agressão física. Xingava-me, gritava comigo, dando-me ordens, fazendo ameaças de não retornar na semana seguinte, caso eu não a atendesse no que ela havia estipulado. Não permitia que eu a tocasse. Desconfiava de mim, achando que eu estava sempre querendo enganá-la. Enfim, eu era vista como uma inimiga, contra a qual ela tinha que se armar e tentar dominar, para que eu não a fizesse mal. Esta mesma atitude estava presente em sua relação com outras pessoas, alternada com momento em que ela se agarrava a mãe quase em pânico.
Contrapondo-se a esta sua desconfiança em relação a mim, por várias vezes Ana combinou algo comigo e, depois, agiu de forma contrária, acarretando sempre algum tipo de prejuízo para mim. Eu ficava sentindo-me enganada, traída na minha confiança. Mostrei-lhe os seus sentimentos de ser enganada por mim, a sua atitude de enganar-me e como eu estava me sentindo enganada por ela.
Com o tempo, essa atitude de agressividade e desconfiança foi desaparecendo e dando lugar a uma atitude de maior proximidade afetiva e física, de cooperação e companheirismo nas brincadeiras, não sem antes submeter-me a duras provas de confiança. Paralelamente, ia se desenrolando uma mesma mudança na sua relação com as outras pessoas e ela ia assumindo fisicamente uma postura mais ereta e desenvolta. A sua firmeza rígida e fechada foi sendo substituída por uma firmeza mais flexível e aberta.
O que eu tinha a oferecer àquela criança era a minha relação com ela e possibilitar que, através de sua vivência da relação comigo, ela pudesse experienciar a sua relação com o mundo de uma outra maneira.
Creio que em outras situações, com outras crianças, que me chegam com diferentes problemáticas, a minha função é também a de oferecer uma relação, onde elas possam experienciar os seus sentimentos, as suas necessidades, as suas percepções de si e do mundo, por vezes confusos, ou assustadores, ou dolorosos, sentindo-me como um continente seguro. Pois bem, em que consiste esse continente seguro? Na certeza de que não estou ali para recriminá-la ou reprová-la, podendo ela expressar qualquer faceta de si mesma, sem que eu deixe de aceitá-la, sem que isso altere a minha disponibilidade de estar com ela.
Esta segurança consiste também na confiança de que eu não irei força-la a entrar em contato com experiências ou aspectos de si mesma que lhe sejam difíceis. O caminho e o ritmo da caminhada estarão de acordo com as suas possibilidades a cada momento.
Parto do princípio, confirmado diversas vezes na prática clínica, de que existe uma sabedoria intrínseca a todo organismo, responsável pela sua capacidade de autocondução e autorregulação, presente também na criança em terapia, aguardando apenas que eu lhe propicie condições facilitadoras, para que este processo autorregenerativo se ponha em marcha. Forçar a criança a ter uma consciência reflexiva significaria atropelar o seu processo ou o seu desenvolvimento para além de sua fase atual.
Tenho percebido ainda que não é necessário que as vivências alcancem uma representação consciente em termos conceituais, para que ocorra um processo de mudança na criança. As vivências podem ser experienciadas apenas ao nível simbólico, nas brincadeiras e nos jogos, ou vividas na relação presente comigo. Em ambos os casos, a minha função como terapeuta não corresponde em seu âmago a uma decodificação do material trazido pela criança. Os símbolos verbais, as palavras, não são os únicos elementos com que as vivências podem interagir.
O importante não é o conteúdo, mas a qualidade do que é vivido. E esta qualidade é composta de um lado, pela significação que a experiência ganhou no mundo interno da criança e, por outro lado, pela relação afetiva que se estabelece entre nós e que torna possível uma ressignificação daquela experiência.
Em outras palavras, o que leva o processo de mudança adiante não é o trabalho cognitivo em cima dos conteúdos, mas a vivência afetiva da relação, onde eu posso facilitar o seu processo através da interação das minhas próprias ações, atitudes e dos meus próprios sentimentos com os sentimentos e significados da criança vividos ali comigo. Desta forma, a sua maneira de experienciar será diferente, embora o conteúdo possa ser o mesmo.
É claro que essa relação tem limites. Eu não vou ser, por exemplo, a mãe dela e é importante mesmo que eu não a substitua junto à criança. Eu não vou leva-la para casa e passar a cuidar dela. Mas naqueles momentos em que nós estamos juntas no consultório, é fundamental que eu esteja o máximo possível disponível ao nosso contato e podendo me expressar livremente, sem inibições decorrentes de juízo social de valor, sem estar preocupada com a minha performance nas brincadeiras, nem com o produto do que eu venha a criar ali com a criança, seja em movimento, som, desenho ou modelagem, ou em uma dramatização.
É importante que o terapeuta possa expandir ele próprio, de forma consciente, a sua expressividade e a sua percepção, de modo que possa utilizar esses recursos na relação com a criança e ajudá-la a liberar esses recursos em si mesma.
Segundo os etólogos Lorenz e Tinbergen, em vários animais a comunicação se dá através de condutas compostas de sinais posturais e vocalizações. Tais condutas são ações expressivas, ou seja, expressam uma atitude afetiva, que corresponde à experiência imediata do sujeito; são uma resposta não dirigida ao estímulo percebido pelo sujeito, sem que haja a intenção de comunicar algo. Na linguagem humana, esta comunicação representa a parte filogenética que cada um de nós traz ao nascer; provém e veicula os afetos, servindo-se de uma linguagem do corpo.
Ao longo do nosso desenvolvimento, vamos privilegiando a linguagem verbal e nos esquecendo dessa outra, sem que, no entanto, ela deixe de atuar de forma contundente em nossas relações. A relação com a criança é uma boa oportunidade de recuperarmos e reintegrarmos essa linguagem em nós mesmos.
Ao falar da primazia da relação, lembro-me de Martin Buber em sua antropologia filosófica, quando diz “No começo é a relação.” A relação com o outro é primordial, dando-se de forma imediata e direta, pré-conceitual e sensitiva, possibilitando que o sujeito se constitua como um EU e passe então a estabelecer relacionamentos objetivantes e conceitualizantes com o mundo a sua volta. A totalidade e a reciprocidade precedem a separação e o conhecimento. O TU orienta a atualização do EU e este atua sobre o TU.
Em outro campo de conhecimento sobre o ser humano, o psicanalista René Spitz conclui, a partir de seus estudos de observação direta e de experiências controladas com bebês no primeiro ano de vida, que os processos e interações afetivos precedem qualquer outra função que posteriormente desenvolver-se-á sobre a base criada por essas trocas afetivas. Também aqui chega-se à conclusão de que a relação afetiva é primordial e que ela é que permitirá na sequência do desenvolvimento do ser humano o início das relações com as coisas.
Corroborando tais colocações, Eugène Gendlin, em sua Teoria de Mudança da Personalidade, afirma que para haver mudanças maiores da personalidade é necessário que ocorra alguma espécie de processo afetivo intenso ou processo de sentimentos no contexto de um relacionamento interpessoal presente. E acrescenta que “a mudança da personalidade é a diferença feita por suas respostas em levar adiante o meu experienciar concreto.” Para ser eu mesmo, preciso de suas respostas, na medida em que minhas próprias respostas falham em levar meus sentimentos adiante. Em princípio, nestes aspectos, sou realmente eu mesmo somente quando estou com você.

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